Há jogos que se contentam em seguir a cartilha dos grandes RPGs. Outros, mais ousados, não apenas se inspiram neles, mas os estudam, reinterpretam e nos devolvem uma experiência capaz de renovar nosso encantamento com o gênero. Clair Obscur: Expedition 33, da desenvolvedora francesa Sandfall, é um desses casos raros. Um RPG que não se esconde atrás de suas influências — pelo contrário, as assume com orgulho — e, mesmo assim, se ergue como algo único, expressivo e moderno.
A pintura de um mundo que desbota
A história de Clair Obscur se desenrola sob uma premissa angustiante: a cada ano, a divindade marca em uma torre distante a idade com a qual os habitantes do mundo desaparecerão.
Essa contagem regressiva é o pano de fundo de uma jornada desesperada, onde um novo grupo de sobreviventes parte em uma expedição condenada a romper esse ciclo, mesmo sabendo que as anteriores jamais retornaram com o sucesso esperado.
É um mundo quebrado, povoado por memórias e escombros de derrotas passadas. Mas é também um mundo que insiste em viver. Os personagens que encontramos não são apenas soldados da narrativa; são reflexos de diferentes formas de enfrentar a morte, o luto, a esperança e a própria memória.
Sem recorrer a longos monólogos ou exposições cansativas, o jogo nos envolve por meio de diálogos naturais, gestos sutis e relações que se constroem organicamente.
O ritmo da narrativa é firme, quase urgente. Não há espaço para desvios ou capítulos desnecessários (a não ser que o jogador queria explorar). E embora isso sacrifique, em alguns momentos, o aprofundamento de certas ideias, também garante que cada cena, cada escolha, tenha o peso emocional necessário. A coerência temática, centrada em como lidamos com o fim — e o que fazemos até lá — sustenta um enredo maduro, tocante e dramático.
O turno que pulsa como se fosse ação
Se Clair Obscur fosse apenas bonito e bem escrito, já valeria a atenção. Mas é no combate que ele realmente brilha.
A mecânica de batalhas por turno, embora clássica, é elevada a um novo patamar com dinâmicas que exigem atenção, reflexo e ritmo. O jogador precisa esquivar dos ataques dos inimigos em tempo real, mas também defender (parear), além de haver outras funções desbloqueadas ao longo do jogo, como o salto.
Há claras inspirações em Persona 5, especialmente na parte de usar armas com munições limitadas no combate em turno. Mas Clair Obscur vai além: ele inova ao transformar o jogador em um participante ativo durante o turno inimigo. É como se o sistema dissesse que, mesmo quando não é sua vez, você ainda tem algo a fazer. Parar, esquivar, contra-atacar. Estar presente. E isso muda tudo.
Cada personagem do grupo tem uma mecânica própria e um papel muito bem definido em batalha. A diversidade estratégica é enorme, mas acessível. Ao subir de nível você pode adquirir pontos de habilidades e deve elevar atributos. Dessa forma você cria builds, mas lembre-se de optar por uma equipe equilibrada.
A dificuldade é alta a partir do “Normal”. Os chefes são impiedosos e o jogo é punitivo, caso você erre as esquivas e contra-ataques.
Com o sistema de Pictos e Lumina, a customização de builds atinge níveis surpreendentes, sem se tornar opressiva. É um RPG de turno na essência, mas modernizado com ousadia e inteligência — um feito raro.
Uma galeria em movimento
Visualmente, Clair Obscur é um espetáculo. Sua direção de arte, inspirada na Belle Époque e nas expressões clássicas da cultura francesa, transforma o mundo em um grande palco de pintura, música e teatro.
É como caminhar por dentro de uma galeria viva, onde cada cenário foi cuidadosamente composto não apenas para servir à exploração, mas para provocar sensações. É impossível não relacionar o RPG há algum soulslike, seja pela dificuldade, mas principalmente pela arte que retrata um mundo amplo e “quebrado”, quase desbotando.
A trilha sonora é, sem exagero, fantástica. Vai do sinfônico ao experimental, da ópera à eletrônica, sempre dialogando com o momento narrativo ou o clima do combate. Há faixas que arrepiam, outras que confortam, e algumas que passam tão rápido que queremos voltar apenas para ouvi-las de novo.
Se a trilha e o visual arrebatam, a ambientação complementa: há um charme intencional na forma como o mundo é estruturado. A ambientação é variada, mas sempre com um clima feerico.
A exploração, embora limitada em alguns aspectos técnicos, parece algo à parte — como se cada segredo fosse um presente deixado ali só para os curiosos. O jogo recompensa a atenção e o olhar detalhista.
Um ponto que precisa ser comentado é sobre as expressões e movimentações dos personagens. É possível sentir como cada um deles é variado e você realmente sente o peso quando se movimenta, mas também se conecta nas cinematics, já que eles estão sempre fazendo “caras e bocas” e não com um rosto parado e sem vida.
Vale ressaltar que os menus são amplamente estilizados e o jogo está localizado em português brasileiro.
Uma experiência que permanece
Clair Obscur: Expedition 33 não é só mais um bom RPG. Ele é um dos melhores representantes modernos do gênero, e não por tentar reinventar a roda, mas por fazer cada engrenagem girar com beleza, emoção e propósito.
Sua duração mais enxuta, por volta de 28 a 35 horas, é uma virtude: cada minuto tem peso, cada cena é construída com intenção. Claro que o jogador pode explorar mais o mundo e aproveitar muitos segredos, como a maioria dos RPGs oferecem.
Se o jogo focasse um pouco mais tempo em expandir algumas ideias e momentos na história, talvez alcançasse a excelência máxima. Muitas vezes o jogador pode se sentir “sem informação”. Como se tudo fosse um mistério e difícil de descobrir, mas isso também pode ter sido uma escolha artística.
Ainda assim, o que temos é memorável. Um RPG de turno que pulsa como se fosse ação, uma história sobre morte que fala sobre vida, uma carta de amor ao gênero feita com técnica, emoção e alma. Um título digno. Um clássico moderno — e, quem sabe, um novo marco nas batalhas em turno.
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Com narrativa tocante, sistema de batalha criativo e direção de arte marcante, Clair Obscur: Expedition 33 mostra que ainda há espaço para inovação nos RPGs por turno, especialmente quando se mistura ação em tempo real. Refinando cada elemento do gênero com cuidado, o jogo da Sandfall Studio entrega uma experiência envolvente e madura, que merece atenção.
Créditos Autor: Vika Rosa
Créditos Imagens: Reprodução Internet
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