O gênero de aventura, que tradicionalmente tem jogos muito mais focados na investigação de ambientes e resolução de mistérios do que por uma gameplay centrada no combate e em reflexos rápidos, é considerado hoje um nicho dentro do mercado de games quando comparado a gêneros mais populares como RPG (especialmente os de ação atualmente) e ação-aventura.
Com uma trama repleta de mistérios, direção de arte rica em detalhes de cada ambiente, uma história surpreendente e com reviravoltas de explodir a cabeça, Blue Prince merece a atenção de qualquer pessoa que não reduza os games a caixinhas temáticas e esteja aberto a mergulhar no que de melhor cada gênero único em sua proposta tem a oferecer.
O que há na sala 46?
O aspecto mais desafiador de escrever a review de um jogo como Blue Prince é que seu elemento mais instigante é aquele do qual menos se pode falar explicitamente: a narrativa. E, aqui, pontuo que a narrativa está muito além do que se tradicionalmente entende por história, com suas tradicionais cenas de corte, textos ou diálogos, pois toda a misteriosa (e estranhamente acolhedora e sombria) mansão Mt. Molly é uma personagem e carrega em si uma energia tão instigante quanto intimidadora de se explorar, mesmo este não sendo um jogo de terror marcado por sustos ou ambientes macabros. É na ambientação que Blue Prince conquista à primeira vista, mas é na exploração que a misteriosa trama que o jogo revela seu verdadeiro poder.
O jogo conta a história de um jovem chamado Simon, que herdou a mansão Mt. Molly de seu falecido avô, Herbert S. Sinclair, e recebe dele uma carta com uma missão: encontrar a sala 46 da mansão, um cômodo secreto de uma gigantesca casa que, em teoria, conta com “apenas” 45 cômodos. Após lermos a carta póstuma de boas-vindas escrita por Hebert Sinclair, devemos explorar os ambientes da mansão em 50 passos, sendo que cada vez que entramos ou saímos de um cômodo, um passo é consumido e, caso cheguemos a zero, somos obrigados a “encerrar o dia” e começar tudo do zero na manhã seguinte. Algumas dessas salas nos dão passos extras ou consomem um número maior deles, mas essa é a premissa básica de exploração de Mt. Molly e justamente o que a torna tão viciante, ainda que frustrante por muitas horas.
O grande problema é que, em vez de simplesmente precisarmos decorar as rotas até enfim chegarmos à misteriosa sala 46, Blue Prince é um jogo de aventura e resolução de quebra-cabeças com elementos de roguelike, o que significa que cada novo dia que iniciamos “embaralha” os cômodos. A cada vez que abrimos uma porta, precisamos escolher um entre três ambientes e, por isso, examinar atentamente o mapa que mostra nossa progressão pelas salas é imprescindível para não acabarmos num cômodo que nos impeça de avançar.
Apesar dessa premissa, nenhum ambiente em Blue Prince é “desperdiçado”, pois mesmo um cômodo que não dão acessos a outros nos fornecem itens importantes para nossa progerssão, como chaves, joias e moedas de ouro. O Mt. Molly é um grande labirinto disfarçado de mansão, e cabe ao jogador resolver os mistérios e tirar de cada novo dia uma chance de progredir mais do que na tentativa anterior. Às vezes, o cômodo que encerra nosso caminho em uma tentativa é o mesmo que permitirá nosso progresso no dia seguinte na mansão.
Ao longo da campanha, encontrarmos diversos textos de Herbert S. Sinclair ou papeis que não dicas sobre como abrir uma caixa ou resolver o mistério de um cofre disfarçado de roleta que guarda um item valioso. Algumas dessas dicas, por exemplo, só podem ser lidas após termos acesso a uma lupa que dá zoom em determinados documentos antes ilegíveis, e é nessa dinâmica que descobrimos, pouco a pouco e ao fim de cada dia, mais peças do quebra-cabeças por trás da mansão Mt. Molly e da própria vida do avô de Simon.
A melhor forma de ter na cabeça todas as informações necessárias para a progressão na campanha é, literalmente, anotando cada detalhe novo que descobrimos, pois a mansão guarda tantos segredos para resolução dos puzzles que é praticamente impossível simplesmente decorar tudo de cabeça. Portanto, para chegar à sala 46, é preciso não apenas persistência, mas uma rotina meticulosa de registrar informações que podem nos ser úteis várias tentativas depois. Blue Prince é, em suma, um jogo que ensina (e irrita) por meio do erro e da frustração, como um típico roguelike.
Uma instigante teia de mistérios
Diferentemente de títulos como Return of the Obra Dinn e What Remains of Edith Finch, Blue Prince adiciona uma camada de desafio justamente por ter nele elementos de roguelike que nunca torna um dia na mansão igual ao outro, exigindo dos jogadores uma capacidade de adaptação e anotações constantes para não perder nenhum detalhe importante.
À medida que avançamos na história, descobrimos segredos sobre a vida e Herbert S. Sinclair que evidenciam que a aleatoriedade dos cômodos é apenas uma das várias surpresas do Mt. Molly, inclusive fora da mansão, caso algum jogador tenha a curiosidade de explorar o que há no entorno do gigantesco imóvel.
Assim como em Hades, é possível terminar uma única “run” de maneira rápida, mas até efetivamente descobrir todos os segredos necessários para chegar aos créditos de encerramento, talvez sejam necessárias 15 ou 20 horas de tentativas e erros, o que pode gerar frustração em muitos jogadores, mas que ao mesmo tempo é o que diferencia Blue Prince de outros jogos tradicionais de aventura e o torna ainda mais único no gênero. Nenhuma dia será igual ao outro, e grande parte da magia do jogo está justamente nessa constante sensação de desafio, erro, frustração e, somente então, recompensa.
Dominar o gerenciamento de passos, ou seja, saber até onde você pode ir e fazer escolhas que sempre nos permitam progredir ou desbloquear um item-chave, é indispensável para ter sucesso, e cair no erro de sair de uma sala sem antes explorar todos os itens lá disponíveis invariavelmente custa caro.
Eterno retorno
Mesmo após zerar o jogo, ainda é recomendável explorar o Mt. Molly explorando mistérios e tendo acessos a conteúdos de história que não obtivemos na primeira tentativa bem-sucedida de alcançar a sala 46. A história de Blue Prince é tão instigante e cheia de surpresas que é quase impossível não querer explorar cada cantinho da mansão ainda não descoberto ou mistério não revelado, e as revelações posteriores valem o esforço de cada nova tentativa.
Não é exagero dizer que, mesmo após completar o jogo duas vezes, ainda há mistérios da mansão Mt. Molly que ainda não descobri, o que confere a Blue Prince um fator de replay raro em jogos focados de aventura. Mesmo com um escopo menor que de títulos AAA, Blue Prince escreve o próprio nome como um dos melhores games de 2025 até o momento e se coloca como um forte postulante à temporada de premiações.
Mais do que é um excelente representante do gênero aventura, Blue Prince é uma prova de que um game não precisa de sistema de combate ou exigir reflexos rápidos para se mostrar desafiador do começo ao fim. O título desenvolvido pelo estúdio Dogubomb e publicado pela Raw Fury está no mesmo nível de qualidade que jovens clássicos como Return of the Obra Dinn e What Remains of Edith Finch, exigindo dos jogadores enorme atenção a detalhes para prosseguir por uma mansão que, a cada novo dia, nos levará a caminhos diferentes, exigindo constante capacidade de adaptação. Repleto de mistérios e com uma história que surpreende do começo ao fim, Blue Prince é um capítulo brilhante dos games de aventura e, mesmo com um escopo menor, tem tudo para ser lembrado como um dos melhores lançamentos de 2025.
Créditos Autor: Gabriel Sales
Créditos Imagens: Reprodução Internet
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